domingo, 31 de outubro de 2010

Entrevista de Debora Finochiaro com Rodrigo Monteiro sobre crítica

74° programa - 06 de novembro DE 2010
♫ bom dia Lucia, bom dia caríssimos ouvintes...

“Para mim, até mesmo quando a peça é ruim, vale a pena. É maravilhoso ouvir o burburinho das pessoas, da sensação de saber que há pessoas que estão entrando numa sala de espetáculos pela primeira vez, da abertura das cortinas e dos aplausos no final. O teatro é vivo porque o ator que está no palco é vivo, é humano como nós. Reverenciar quem faz teatro é o primeiro gesto do crítico que só escreve sobre algo que, antes de tudo, vale a escrita. A crítica não vive sem o teatro, mas o teatro vive sem a crítica.”
Rodrigo Monteiro – o mais novo Crítico Teatral da cidade!

E é com alegria que hoje falo sobre seu trabalho:

O blog TEATROPOA nasceu numa Oficina de Crítica Teatral, ministrada pelo jornalista Kil Abreu, hoje da Revista Bravo!, no 15º Porto Alegre em Cena. Todos os alunos deveriam escrever uma crítica do espetáculo A comédia dos erros. Rodrigo, já licenciado em Letras e quase bacharel em Cinema, resolveu usar a ferramenta blogspot para mostrar para os colegas o seu texto, que também poderia se acessado pelos atores do grupo e demais interessados. Os acessos ao blog levaram a outros espetáculos: hoje, somam 150 textos publicados num espaço virtual sem nada que não sejam críticas teatrais. Com mais de trinta e cinco mil acessos, nesses dois anos, o blog é referência para trabalhos de conclusão e artigos acadêmicos, além de ter sido um dos objetos de pesquisa da dissertação de mestrado da jornalista Helena Mello: Aspectos da crítica teatral brasileira na era digital.

Jurado dos Troféus Açorianos e Braskem, Rodrigo conta que a tarefa de assistir à todas as peças não lhe assustou: “Eu assisto a tudo e sempre com o mesmo olhar. Para a análise que faço, não pode me interessar se é o décimo ou o primeiro trabalho de tal diretor, se é a estreia ou a centésima apresentação do espetáculo, se é um monólogo, um musical ou teatro experimental. A mim, me importa que é um evento pelo qual alguém saiu de casa preparado para ver, que começaria em tal hora e em tal lugar. Sou um espectador e, para nós da plateia, de um modo geral, importa pouco o que aconteceu com a peça antes de chegar a hora da apresentação.”

Em 2010, Rodrigo foi convidado pela Coordenação do Porto Alegre em Cena para abrir e coordenar o blog da 17ª edição - O blog POAEMCENA.BLOGSPOT.COM trouxe críticas teatrais de todos os espetáculos participantes desse evento. Com mais de dez mil acessos, os cento e cinqüenta textos foram escritos, além de Rodrigo, por 73 pessoas convidadas por ele, a maioria delas artistas e técnicos da classe teatral porto-alegrense.

Ele acredita que não há opinião que possa ser desmerecida antes de ser dita. O leitor, esse sim, vai pular o texto que não lhe interessa ler e vai dar atenção e refletir sobre o que disse a pessoa cuja formação lhe é importante. Isso é democracia.

A troca de informações, o retorno, a reflexão são bases para a crítica. E todos são convidados a fazê-la, a dar um passo além do seu aplauso ou do seu cruzar de braços ao fim da peça, e se tornar crítico, isto, refletir o porquê do aplauso ou o porquê do cruzamento de braços. Esse é o convite do Rodrigo Monteiro: compartilhar suas opiniões e engrandecer o teatro gaúcho, palco que traz muito orgulho ao nosso país e, cada vez mais, ao nosso mundo.

E a sua dica é o espetáculo Clube do Fracasso da Cia Rústica de Teatro, que estará em cartaz somente até amanhã às 20h no Estudionave, que fica em um casarão/loft tombado na Álvaro Chaves, nº 34.

Assistam, critiquem, analisem, curtam e mais que tudo, aproveitem... e tenham todos um ótimo fim de semana com muito amor e arte, Um beijo da Deborah!

Entrevista de Débora Finocchiaro com Rodrigo Monteiro na Band (FM99,3).

sábado, 30 de outubro de 2010

Crítica Literária

A tarefa crítica tem diante de si um objeto concreto: a obra literária. Esta pressupõe a atividade de um sujeito criativo: o escritor/poeta. Este tem à sua frente um destinatário indefinido: o leitor. Em princípio, portanto, há três figuras em jogo: o autor, a obra, o leitor. O crítico, naturalmente, não pode ignorar nenhum dos três. O menosprezo de um – e o conseqüente privilégio do outro – foi o responsável pela falácia das concepções críticas do passado: privilégio do autor – o erro da crítica biográfica; do leitor – o erro da crítica impressionista; da obra – o erro da crítica formalista em geral, como a estilística, a semiologia, o estruturalismo etc.
O autor é, antes de mais nada, um indivíduo histórico concreto,
nascido numa determinada época, numa determinada sociedade, com uma estrutura econômica, uma organização política, um sistema jurídico que condicionam sua existência desde antes do seu nascimento e aos quais ele não pode fugir. Ele pode modificar esses elementos, mas qualquer ação nesse sentido já está previamente condicionada pela própria ação que esses elementos exerceram/exercem sobre ele. Noutras palavras: ele tem que agir sobre a sua sociedade com os instrumentos fornecidos por essa própria sociedade, ou seja, por seu momento histórico.
Como escritos, esse indivíduo deverá ter:
a) uma determinada maneira de combinar as palavras no verso/frase – vinculada a um desejo de atingir a perfeição;
               
b) um determinado modo de ver o mundo – vinculado a um desejo de comunicar essa mundividência a um público universal;
c) um certo ideal de comportamento – vinculado a um desejo de incorporar ao padrão de vida do seu público a sugestão de mudança implícita em seu texto.
Da mesma maneira, a obra é um objeto concreto, produzida num determinado momento e só produzível naquele determinado momento. Ela organiza três macro-elementos internos desdobrados em diversos micro-elementos que se potencializam em múltiplas relações:
um tema – sempre referido a um problema humano, ponto de partida da criação, fornecido pelo meio;
uma forma – estruturação estetizante desse problema, conferida pelo autor;
a linguagem – instrumento literário de abordagem do problema do humano, recebida e modificada pelo escritor, e que, por isso, participa da natureza comunitária do tema e da natureza individual da forma.
Reunindo esses três elementos, a obra traz em seu corpo as marcas identificadoras tanto da época quanto do autor que a produziu, ou seja: uma dimensão coletiva, presente na linguagem e no tema; uma dimensão pessoal, presente na linguagem e na forma. Uma vez publicada, esse movimento sociedade-autor se reverte e se transforma em obra-sociedade: assim, como a sociedade agiu sobre o autor, através dos condicionamentos históricos, o autor passa a agir sobre a sociedade, através da obra publicada.
Para tanto, a arte exige de toda obra pelo menos três requisitos indispensáveis:
interesse – que está em seu conteúdo: a importância que este apresenta para atrair e prender sucessivas gerações de leitores por tempo indeterminado, e que será tanto mais interessador quanto mais atual for o problema humano que o consubstancia;
eficácia – que está na sua forma: o poder necessário para reproduzir o interesse, diretamente vinculado ao talento do escritor;
permanência – que resulta da união do interesse do conteúdo e da eficácia da forma, para superar os limites originais e originários de tempo e espaço da obra, já que nenhum escritor se afirma como agente cultural se sua obra morrer com ele.
O leitor é um contemporâneo ou póstero do autor, que procura a obra com uma necessidade dupla: informar-se e/ou aprazer-se, baseado em dois princípios universais, comuns a todo homem normal – o princípio de saber e o princípio de fruir. Todo homem normal deseja ter conhecimentos e prazeres, e a obra literária é uma fonte de satisfação a esses dois desejos.
Diversos do conhecimento científico/filosófico, que é mais objetivo, e do prazer material, que é mais universal, o conhecimento e o prazer artísticos variam de autor para autor, de leitor para leitor, segundo as disposições anímicas de um e de outro no momento da escritura e da leitura e podem assumir as mais diversas formas: o conhecimento pode se transfigurar em incentivo, persuasão etc., e se define na ampliação da mundividência; o prazer, em comoção, consolo etc., e se define no refinamento da sensibilidade do leitor, fundidas as duas conseqüências na humanização do universo – finalidade última de toda prática cultural.
Aí temos caracterizadas brevemente as três figuras que pré-existem à tarefa crítica. Mas o objeto imediato dessa tarefa é a obra: a constituição do autor e as reações do leitor só interessam na medida em que iluminem ou acrescentem o ser da obra.
Se esta é uma reunião de tema-forma-linguagem, exigindo intresse-eficácia-permanência, somente realizada no contato com leitor, a tarefa crítica deve tomar a obra e vê-la:
1) em seus recursos instrumentais, ou seja: a sua expressão – o conjunto de processos lingüístico-estéticos de que se serviu o autor para literatizar a sua visão de mundo;
2) em sua visão de mundo, ou seja: a sua ideologia – o conjunto de posições  culturais que o autor assume, tanto ao nível da consciência quanto da inconsciência, sobretudo a partir das colocações denotativas;
3) em sua atuação sobre o leitor, ou seja: a sua repercussão psico-social – o conjunto de efeitos produzidos pela obra sobre o leitor e sobre a sociedade, verificáveis em depoimentos pessoais ou em fatos históricos.
A análise dos recursos instrumentais foi o reduto privilegiado de todas as teorias e críticas esteticistas: reduzindo a obra literária à dimensão artesanal do "estilo", essa crítica fechou os olhos à fermentação ideológica e à repercussão social do poema. A área instrumental é a dimensão essencial da obra – o seu reduto ontológico – mas a focalização dos seus atributos não pode ultrapassar o nível da instrumentalidade: pois o autor se serve desses recursos literatizantes exatamente como meios para a estetização de sua ideologia. Donde se deduz que restringir a crítica a esses elementos constitui uma atitude nitidamente contra-ideológica: contornar a ideologia para retirar o real de discussão e evitar a repercussão histórica da obra.
Uma crítica mais ampla verá esses atributos literários em sua funcionalidade estética, ou seja: dando vida poética ao problema humano que eles literatizam. Aqui, a ideologia do autor aparece transfigurada exatamente pelo procedimento literatizante a que é submetida, donde resulta uma ideologia sem a restritiva coloração política que o termo assumiu depois do lançamento do repto marxista, mas no seu sentido pleno de conjunto de idéias a orientar o comportamento do indivíduo que as formula. Só não se confunde com a última de toda prática cultural.
Mas uma crítica verdadeiramente totalizante não poderá deixar de investigar a repercussão da obra analisada, desde seu espaço imediato (a sociedade onde nasceu e a que ela se dirige) até o seu espaço possível (ou seja: o próprio planeta). Evidentemente, o crítico não tem como investigar o efeito individual da obra sobre cada leitor isolado, mas pode observar a reação coletiva dos leitores após a leitura, como no caso daqueles livros que provocarem revoluções e que alteraram o rumo da história. Quanto mais ampla for a área de propagação do efeito desta obra, tanto maior será a sua significação para a humanidade. No caso de obras do passado, já reconhecidas pela tradição, a própria História fornece os dados para a avaliação. Os exemplos são muitos: desde Homero, com sua influência na formação de uma mentalidade grega, passando por Camões, com seu apelo à resistência nacional, até os mais diversos escritores contemporâneos, empenhados – os representativos do nosso tempo – em persuadir o leitor a um combate direto pela humanização do presente.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Entrevista realizada por Zé Antônio Vargas com Rodrigo Monteiro.

01 - Como jornalista, o processo de uma crítica teatral, me parece, às vezes, bastante "inicial" e, nem sempre objetivo. Que audiência, de fato, você pensa em atingir?


Eu escrevo para o meu próprio blog, espaço virtual esse que eu mesmo criei e coordeno. Não há, assim, uma política de publicação dos textos que seja anterior a mim. Não penso que possa haver, de fato, um público alvo para os textos publicados num blog. Primeiro, porque eles podem ser acessados em qualquer país do mundo. Segundo, porque o acesso pode ser feito a qualquer hora ou dia. Se você digitar no Google um espetáculo teatral sobre o qual eu tenha escrito, o link para o meu blog vai aparecer não importando se o texto foi escrito ontem ou há dois anos. Sem falar que sabemos todos que interessados lêem textos na internet quando estão fazendo uma pesquisa. Uma vez, uma aluna de dramaturgia do Rio de Janeiro me mandou um email, porque ela estava querendo fazer um espetáculo sobre o qual não encontrava nada até ler o meu blog. Nesse sentido, é bobo não dizer que gosto que aqueles que estão próximos a mim leiam os meus textos, mas não posso escrever para eles apenas.

02 - De algum modo, a figura do crítico é vista como "o algoz". Você acredita ou percebe essa visão de quem está do outro lado? E isso te incomoda?

Minha primeira formação é como professor. Com uma pilha de provas na mão, todo o professor sabe o quão cheia de meandros é a relação com seus alunos nesse momento do ensino. Ninguém reage naturalmente a uma avaliação, seja ela feita por um especialista ou por qualquer um. É claro que sinto que a relação comigo se modifica quando me encontram na plateia ou ficam sabendo que eu fui assistir ao espetáculo, mas, felizmente, nem sempre é ruim. O retorno dado é visto por muitos como positivo, seja ele como for. Afinal, é um outro olhar, a visão de alguém que está totalmente de fora do processo.

03 - Do day-after da crítica, é lugar comum se ouvir: "tudo bem se fosse uma análise construtiva". Como você recebe esse tipo de réplica?

Recebo como natural. Nunca vi um aluno ficar feliz porque tirou uma nota baixa. E nenhum ator ou diretor vai ficar feliz quando recebe uma crítica negativa. Eu não me sinto bem quando fazem uma avaliação negativa da minha crítica também. O importante é mantermos a relação não entre pessoas, mas entre trabalhos (sejam eles pagos ou não). Depois de dois anos, eu acho que já houve tempo para a classe perceber que eu não tenho nada contra a pessoa de alguém até porque já falei mal e já falei bem de trabalhos da mesma pessoa. Eu jamais saio de casa certo de que vou ver algo ruim. Se saio, é porque tenho a esperança de me divertir, de gostar do que vou ver. E fico muito feliz em escrever uma crítica positiva. Quem não gosta de ver uma boa peça de teatro?

04 - Por que você escolheu escrever sobre o teatro?

Eu já escrevia sobre teatro quando estava no Curso de Letras. Escrevia e mandava por email para as pessoas que eu conhecia. Não sei porque o teatro especificamente, afinal poderia escrever sobre literatura e sobre cinema, sendo graduado nas duas faculdades. Talvez, o teatro tenha me escolhido. Me sinto muito bem sentado na plateia esperando para começar uma peça. E meus textos são uma forma de agradecer ao teatro a oportunidade de sentir esse prazer, ou uma reclamação a ele por não tê-la sentido.

05 - A opinião do crítico, sem exageros, é entendida por muitos no meio teatral como uma espécie de arauto. Que leitura você faz disso?

É uma visão mofada. Nesse último Porto Alegre em Cena, além de mim, setenta e duas pessoas foram convidadas a escrever sobre as peças a que assistiram e ter seus textos publicados no blog do evento. Não pode haver essa quantidade de arautos numa cidade só. Mas, com certeza, cabem bem mais visões diferentes sobre os espetáculos teatrais que ocupam os nossos palcos. A minha é apenas uma e jamais deve ser considerada como melhor do que a de outra pessoa. Essa avaliação é subjetiva e eu sinto isso na pele todos os dias em que ouço comentários sobre as minhas críticas. Exatamente aquelas pessoas que me felicitam quando eu escrevo positivamente, falam mal de mim quando eu escrevo negativamente. O segredo é ouvir com atenção o que dizem de você e sobre o seu trabalho, mas só levar em consideração aquilo que, a partir dos seus próprios valores, achares que vale a pena.

06 - Hoje, qual é a saúde do teatro gaúcho? Talentos, iniciativas, arroubos, escolas, etc.?

O teatro gaúcho vai muito bem, obrigado. Concorrem ao Troféu Açorianos desse ano, mais de trinta e cinco espetáculos de teatro adulto. Fora os espetáculos infantis, de dança, estudantis e aqueles que já concorreram em anos anteriores ou concorrerão no ano que vem e estão por aí se apresentando. A cidade tem grandes talentos, grupos bastante sérios, artistas que dão orgulho para o estado. Em contrapartida, tudo isso fica em contraste com a situação horrível das nossas salas de espetáculo e a nossa imprensa. Os teatros públicos estão em estado decadente e precisando de reformas. Os privados têm aluguéis altíssimos. E a imprensa gaúcha deixa muito a desejar. Palmas apenas para o Jornal do Comércio, que mantém o Prof. Antônio Hohlfeldt e o Jornalista Hélio Barcellos Jr. a escrever sobre teatro semanalmente. Os demais dão tanto valor às estreias gaúchas quanto aos shows internacionais, sendo que os primeiros ficam meses em cartaz e os segundos ficam apenas um final de semana quando muito. O Segundo Caderno da Zero Hora é dividido entre muitas áreas e o teatro gaúcho, tão rico, não tem o espaço necessário além de merecido. Os outros jornais, O Sul, Correio do Povo e Diário Gaúcho, nem lembram que o teatro existe. Diante disso, vem minha indignação quando vejo uma produção que não está à altura da luta da sua própria classe em conseguir maior espaço. Assim como o cinema brasileiro, há muitas pessoas que não gostam do teatro gaúcho. E por quê? Porque, quando alguém os arrastou para ver, a elas foi apresentado um espetáculo que demorou para começar, os figurinos e os cenários eram improvisados, as interpretações sem estudo, a trilha sonora retirada de filmes... Quando vejo algo assim, me sinto desrespeitado. E os atores/diretores gostam de dizer que o crítico os desrespeita, mas deixam passar desapercebida a reflexão sobre: “será que nossa produção não está desrespeitando o público e os nossos colegas?”

07 - Quando assisti à montagem do Nelson Diniz e da Liane Venturella para “O Gordo e o Magro Vão Para o Céu", entendi, naquele momento, que um tanto de vanguarda, ainda que a mesma de ontem, e um certo "cabecismo" seriam sempre oportunos. O que te surpreende ou no que você quer ser surpreendido, ainda?

Talvez como um bom capricorniano, surpresas me assustam. Das que gosto, são quando diretores cujos espetáculos anteriores foram bastante ruins, finalmente, produzem uma bela peça. Aí fico radiante! Porque é preciso sempre dar crédito para o artista, afinal, bons artistas nunca são mesmo compreendidos em seu tempo. O que mais admiro em Porto Alegre é que aqui há lugar para todos: Há quem faça teatro clássico, o teatrão... Há quem gosta de experimentações narrativas. Há Shakespeare, Brecht e Moliére. Há teatro de rua. Há bons dramaturgos locais (Diones Camargo, Maria Madureira, para citar apenas dois).E há o bom e velho teatro comercial: as comédias, os stand up comedies, as peças consagradas do teatro infantil. Desde que seja bem feito, isso é, produzido dignamente, com aprofundamento, reflexão, cuidado e honestidade, todas as produções são bem vindas. E o preconceito é algo muito ultrapassado felizmente.

08 - Você voltaria atrás em alguma crítica que já tenha feito?

Não, porque voltaria em todas. O Rodrigo que assistiu a uma peça hoje não será o mesmo amanhã e não se expressará do mesmo jeito amanhã. A avaliação é um fato baseado num instante. Muda-se o instante, muda-se o fato, é outra avaliação. Mas quem acompanha o blog sabe que, hoje, já não escrevo mais como escrevia anteriormente.

09 - Porto Alegre e o teatro:
A capital brasileira que sedia o maior festival de artes cênicas do planeta precisa valorizar mais o seu teatro. De um lado, os teatros precisam estar melhores preparados: bilheteria funcionando regularmente para a compra antecipada de ingressos, sala de espera confortável, divulgação ampla, além dos recursos necessários às produções. De outro, o público acorrendo às peças, valorizando os seus artistas. De um modo geral, orgulhosamente, os grupos fazem a sua parte produzindo, em grande maioria, excelentes peças!

09 - Por que morar em Porto Alegre?
Porque gosto do teatro daqui, da gente daqui, dos parques, das ruas, dos bares, dos restaurantes, do clima daqui. Gosto da casa onde vivo, dos amigos que tenho e das coisas que faço.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Paulo José e o ciclo “O espectador crítico”


escrito por vals em setembro 14, 2010 - publicado em http://teatrojornal.com.br/


O ator Paulo José em cena de Um navio no espaço, que abriu o ciclo O espectador crítico no Poa em Cena - foto: Walter Carvalho

Ontem à tarde, aqui em Porto Alegre, iniciamos o ciclo O espectador crítico no charmoso Café Bertoldo, o bar possivelmente mais brechtiano de Porto Alegre, na Casa do Teatro tocada por Zé Adão Barbosa. O diretor e ator Paulo José e o poeta e jornalista Fabrício Carpinejar, dois gaúchos, refletimos sobre Um navio no espaço ou Ana Cristina César, que faz última sessão nesta terça-feira na programação do 17º Porto Alegre em Cena. O aspecto mais dissonante foi quanto ao ponto de vista do espetáculo que indaga incisivamente sobre o porquê de a poeta e escritora ter cometido suicídio aos 31 anos, em 1983. Carpinejar e eu concordamos que essa questão “desvirtua” da elegia que o trabalho presta à autora de Aos teus pés.

O encontro virou uma ode ao próprio Paulo José, de 73 anos. Os amigos apareceram para abraçá-lo, lotaram o espaço. Em seu chapéu panamá, esbanjando carisma e sentido urgente de presença, protagonizou um “mimodrama” à parte assim que encerramos. Sacou o porta-comprimidos do bolso, selecionou um ou outro numa das palmas da mão, segurou na outra o copo de água que a filha Ana Kutner lhe passou – ela contracena com ele montagem – e ingeriu mais uma dose de vida frente ao ao mal de Parkinson. Esse homem apascentado fez tudo isso assoviando uma canção.

O espectador crítico guarda inspiração numa das atividades paralelas que acompanhei em 2005 no V Festival Internacional de Buenos Aires, o Fiba. Era a chamada Escuela de espectador coordenada pelo crítico e pesquisador Jorge Dubatti, no Teatro San Martín. Vi dezenas de interessados, de todas as idades, reunidos para escutar o diretor alemão Frank Castorf na hora do almoço em pleno domingo.

No Poa em Cena, aproximamos os substantivos “espectador” e “crítico” para que eles se contaminem de fato: um espectador mais ativo e consciente em seu “papel” na fruição ou não da montagem e um crítico que também “leia” o seu entorno, homens e mulheres com os quais divide a plateia. Um pouco do que o teórico e crítico italiano Ruggero Jacobbi, radicado no Brasil desde os anos 1940, referência na formação da geração de Paulo José (Teatro de Equipe aqui, Teatro de Arena em São Paulo) fez ao batizar um livro de ensaios publicado pela URGS em 1962, no curso de arte dramática dentro da faculdade de filosofia: O espectador apaixonado.

Transportamos o lugar do espetáculo do edifício (ou praças, galpões) para este presente costurado pela memória da noite passada, estimulando o pensamento e a reflexão em grupo e agregando amantes das artes cênicas em vários quadrantes. Durante cerca de 90 minutos, contracenam as vozes do criador, do crítico, do espectador e de um especialista convidado a discorrer sobre o tema abordado em cena. O Fabricio Muriana, da Bacante, contou-me que um projeto semelhante é desenvolvido em Santiago desde 2008, no âmbito do festival Santiago a Mil e sob título próximo ao argentino, Escuela de espectadores de teatro, idealizado pelo jornalista e crítico Javier Ibacache. O nosso ciclo dura duas semanas, de segunda a sexta, entre 12h15 e 13h30, perfazendo dez encontros com artistas do Brasil e outros países. Em tempo: no primeiro dia, aberto o microfone ao público, ninguém fez pergunta ou comentário e a bola retornou à “mesa”.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Um espetáculo...várias críticas

Publico aqui textos diversos escritos sobre o espetáculo Happy days em cartaz durante o 17º em cena. Para mim, os diferentes olhares sobre esta peça só colaboram para o teatro. A cada dia fico mais convencida de que temos que ter a capacidade de ouvir opiniões diferentes das nossas e refletir sobre elas. Se aprendermos a fazer isso, teremos mais condições de aprender coisas novas e diria até de sermos mais lúcidos e felizes.

Uma longa jornada que, quase, cumpre o que promete.

Uma das maiores promessas deste 17° Porto Alegre em cena foi a montagem de “Happy Days”, texto de um dos mais revolucionários teatrólogos do século XX, Samuel Becket. Dirigido por Bob Wilson, um dos maiores diretores do teatro mundial, e contando no elenco com nada menos que Adriana Asti (musa de vários diretores do cinema europeu, como Bertoluci e Bunüel), era promessa de um grande espetáculo.

A peça conta com um cenário quase minimalista, a não ser pelos efeitos visuais de luzes, que têm uma grande importância no decorrer da peça, nos informando o quanto de tempo se passou durante o monólogo da personagem Winnie. Esta por sua vez se encontra em uma situação insólita: enterrada até a cintura, no alto de um cume de areia. Ali ela acorda, durante vários dias, e discorre sobre a sua vida, desde os aspectos mais banais, como escovar os dentes e pentear os cabelos, até os seus desejos e frustrações mais profundas, sempre dirigidas ao seu interlocutor, Willie.

Por ser praticamente um monólogo e ter quase duas horas de duração, a peça, em alguns momentos, se torna cansativa, ainda mais para quem não está muito familiarizado ao tipo de texto que Becket escrevia, e as leituras que Wilson dá para suas montagens, sempre abusando de luzes e sons.

O texto é uma ironia dramática, a começar pelo título “Happy Days” (dias felizes), que de felizes não tem nada. Trata de desconstruir uma ilusão de alegria, e sua respectiva necessidade imperativa. Winnie lembra seu passado e o confronta com sua situação atual, tentando achar uma possível felicidade escondida nas coisas mais simplórias, como um simples som, qualquer que seja, emitido por seu marido Willie e que a faça se sentir menos sozinha, pois este é o seu maior medo: a solidão.

A profundidade da reflexão acaba sendo diluída na montagem de Wilson. A tradução também peca na qualidade, principalmente nos trechos onde as frases são mais rápidas. O diretor parece explorar demais o seu objeto cênico e esquece de se preocupar com o texto. Falta certa homogeneidade ao decorrer da peça, algo que prenda o espectador do início ao fim, não só em pontos chaves, aqueles em que o diretor parece dizer: “preste atenção agora!”.

No geral, vale à pena, mas um gostinho de “ficou a desejar” é praticamente certo.

Por: Angelo Borba.



Unfortunate Days, Dias Desventurados


Me sentia aquela velhinha semi-surda da última fileira, esticando o pescoço e aguçando os ouvidos a fim de absorver o máximo de "Happy Days", a peça de Robert Wilson que veio para o 17° Porto Alegre Em Cena. A comparação com uma velhinha da última fileira podia muito bem ir perdendo a força ao passo que os minutos corriam, mas não foi bem assim. A atriz italiana Adriana Asti (Winnie), um ponto pálido – engessado – com a boca carmim e a roupa veludosa azul, surgia aos meus olhos como uma figura distante e ofuscada.

Com a premissa básica de que a personagem do irlandês Samuel Beckett, Winnie, encontra-se soterrada até a cintura, podendo gesticular apenas a parte superior; minha gana era a de visualizar claramente a expressão facial da atriz. De que outra forma captaria sua emoção? Solucionei minha pergunta concentrando-me na verborragia – de teor paradoxalmente humanista e confessional – de Winnie e suas devidas entonações. E, é claro, à famosa iluminação de Bob Wilson, que, discordando de Luiz Paulo Vasconcellos, achei-a sutil e adequada (dispensarei o adjetivo precisa, porque a precisão é um dos pilares do diretor, como bem pude conferir ano passado, em "Quartett"). E não ácida, agressiva, desesperadora, espécie de tábua de salvação; não, aqui a luz é muito menos densa ou fria do que em "Quartet". São tons de azul, amarelo e verde que preenchem todo o alvíssimo fundo. Mesmo que a luz fosse ácida, portanto corrosiva, não há nada que a terra, esse velho extintor, não apague; como bem disse Winnie ao ver seu guarda-chuva negro pegando fogo. O ocorrido provocou tal estrondo a ponto de estremecer a plateia, antes tranquila. O mesmo acontece no início dos dois atos (a peça possui intervalo): uma cortina transparente – branca – balança ao som da brisa que vai aos poucos se fortalecendo, até o som atingir seu ápice, tornar-se grave e ensurdecedor. É aí que, cortina, brisa, luz e som… Caem. FOTO: o vulcão em erupção, o iceberg, o Everest, o vazio. Se Winnie é erupção, suas palavras são lavas que escorrem. Definitivamente Wilson sabe jogar com atmosferas de oposição, nos causando aquela sensação dupla de surpresa e (des)conforto.

Happy Days é sarcasmo, a protagonista não tem dias felizes, senão a esperança de um dia feliz. "- Hoje será um dia feliz!", informa otimista ao seu marido Willie (Giovanni Battista Storti). Ela exige ser ouvida, admitindo sua tendência centralizadora, portanto egocêntrica, perante a situação em que ela e o homem se encontram: debaixo da terra. Entretanto, a fala do outro (de Willie) é baseada em grunhidos, arrotos e peidos. Então é coerente dizer que existe comunicação através da palavra? Francesa é a língua falada na peça, apesar do diretor ser norte-americano e o elenco italiano. Provavelmente Beckett via no francês uma língua nova, fresca, cheia de possibilidades, sem imposições culturais de peso, consequentemente com maior gama de nuances se posta em comparação com o inglês. Ao largar sua língua materna, Samuel Beckett renuncia (em parte) aos códigos que organizam / ordenam a sociedade, porque a língua nada mais é do que uma estrutura de códigos firmados social e historicamente de forma arbitrária. Uma montanha podia muito bem ser chamada de berinjela, não?

Winnie ocupa sua boca com palavras a qualquer momento para não ter que enfrentar o vazio, esse eterno perseguidor. Seu jorro verbal é antagônico ao silêncio. O verbo representa o domínio humano sobre o mundo, é uma apropriação ou mesmo domesticação do vivo e morto, tornando "conhecido" o desconhecido. Beckett estava ciente dessa visão unidimensional, portanto não aceitou-a em sua obra, questionando até mesmo os códigos artísticos de representação da vida.

O elemento absurdo está presente até o fechar das cortinas, o cotidiano do casal jamais é alterado pela condição de estarem enterrados, cada um faz o seu papel: Willie lê jornal e admira fotos de mulheres quase peladas, Winnie escova os dentes, faz as unhas, passa maquiagem, ameaça sua cabeça com um revólver e fala. A respeito da cena inicial, na hora vi uma palhaça escovando os dentes! Era a escova vítima cintilante e o creme dental carrasco, amei! Adriana Asti joga maravilhosamente bem com a voz (e que bom!). Saí do Theatro São Pedro pensando: ao longo de seus dias, Winnie destina o próprio destino. Controla. Tenta bloquear a melancolia, mas esta faz parte da vida. Bloquear a melancolia gera mais mal-estar, talvez melhor aceitá-la.

No segundo ato, Winnie está soterrada até o pescoço. Agora o revólver é inútil e a morte, útil. Peça em francês no território brasileiro exige tradução. Eis que esta é também precisa, ainda mais para as girafas ou para as cuícas. Ah, o meu pescoço é de alguns centímetros, por isso tinha horas em que ficava apenas lendo as legendas e ouvindo Winnie. Não me intimido ao partilhar a vocês que nesses momentos preferia estar lendo a obra impressa, seja na grama, no trem ou minha cama. Lanço dois questionamentos e uma conclusão: em que medida as luzes e as cores traduzem o estado interior da personagem? Até que ponto auxiliam na ambientação das narrativas, dos flashbacks? A estética de Happy Days, ilustre e contemporânea, acomete, enrijece o texto dramático.

E agora, Willie?

E agora, Willie?

E agora, Willie?

Por: Guilherme Nervo
 
PS: Meu texto sobre o mesmo espetáculo foi publicado em http://palcosdavidablogspot.com/

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O papel da crítica

Seminário Internacional de Crítica Teatral promove debates sobre teatro contemporâneo

HUGO VIANA

A crítica cultural carrega em geral uma proposta reflexiva, de observar um produto artístico e sugerir leituras variadas, não apenas sobre a qualidade da obra, mas também onde ela se encaixa no panorama cultural de sua época. A preocupação da quarta edição do Seminário Internacional de Crítica Teatral, evento que começa neste sábado e vai até o dia 22 deste mês, no auditório do bloco J da Unicap, é debater essa identidade em transição da crítica, discutindo questões que fazem parte da produção teatral dos últimos dez anos e revisando o que esta primeira década do século 21 trouxe. As palestras (às 19h) que fazem parte da programação são gratuitas, a depender da lotação do espaço (as inscrições são feitas via e-mail: seminariodecritica@gmail.comEste endereço de e-mail está protegido contra SpamBots. Você precisa ter o JavaScript habilitado para vê-lo. ).

“Há muito tempo que se discute a ausência da crítica teatral nos grandes jornais”, explica Rodrigo Dourado, curador do evento. “O Recife teve atuação crítica forte nos anos 1950 e 60, com gente como Valdermar de Oliveira e Hermilo Borba Filho. Houve associação de críticos, cronistas teatrais, que congregavam uma série de intelectuais. Isso desapareceu mais ou menos nos anos 1990, quando a crítica teatral passou a ser uma atividade esporádica - a indústria cultural privilegia o cinema, a música, a moda, que passaram a ter mais importância do que teatro”, reflete o curador.

É nesse contexto que surgiu a ideia para o primeiro seminário, idealizado por Rodrigo e Wellington Júnior quando os dois ainda eram estudantes respectivamente de jornalismo e artes cênicas, na UFPE, e colavam suas críticas pelos corredores da universidade. Enquanto a primeira edição do seminário, em 2005, evidenciou o processo de historiografia da crítica teatral, convocando os decanos da área (como a carioca Bárbara Heliodora e o paulista Sábato Magaldi), a segunda e a terceira iniciaram um lento processo de reflexão para compreender a crítica teatral na formatação do pensamento analítico atual, algo que continua nesta quarta edição.

O seminário agrupa profissionais de diversas nacionalidades, o que certamente amplia o olhar lançado sobre as questões do teatro feito nesta década. Entre os palestrantes, estão a cubana Vivian Martinez Tabares (dia 14), o inglês Ian Herbert (dia 16), presidente honorário da Associação Internacional de Críticos de Teatro (IACT) e a japonesa Miyuki Takahashi (dia 19). “Embora o Recife se sinta um pouco excluído desse mercado teatral dos grandes centros, em geral em todos os lugares o teatro vive a mesma crise: de popularidade, de influência, de dinheiro. Especialmente o teatro experimental”, alerta Rodrigo. “O teatro que cada vez mais se parece com o cinema e a TV sempre tem dinheiro, mas o que quer continuar sendo teatro encontra dificuldades. Então acho que esse panorama que esta quarta edição promove, convidando profissionais de diferentes países, é bom para situar o Recife na produção do mundo. E eu adiantaria que a gente vai perceber que há mais semelhanças do que diferenças radicais”, reflete o curador.

FONTE: http://www.folhape.com.br/

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A tarefa da crítica (em sete teses)

1. O objectivo último da crítica de arte, como a de toda a análise cultural, é colocar em evidência as condições, dependências e interesses de toda a índole - sociais, técnicos, políticos, de género, de dominação económica, cultural, etc. – sobre as quais a prática se produz. É preciso afastar a miragem da inocência: nunca uma prática de representação – e a arte não é outra coisa – é “inocente”. Evidenciar a sua falta de inocência é sempre tarefa da crítica.

2. É tarefa da crítica contribuir para o processo de construção social do significado. Este não pertence à obra – que em si mesma não é mais do que um modesto e incompleto envio – mas a todo o processo social em que ela está implicada. A parte em que a crítica há-de contribuir não será se não a mais desmanteladora, a que melhor contribua tanto para dispersar essa produtividade significante – a crítica há-de ser máquina de proliferação do sentido – como para socavar a ilusão de que este pertence à obra. O sentido pertence à produtividade, afectiva e intelectiva, dos múltiplos agentes que participam nos processos da comunicação social que chamamos arte.

3. Não é tarefa da crítica operar “dentro” da instituição Arte: mas exercer-lhe incondicionalmente a crítica. Uma boa parte da sua tarefa própria é a crítica das políticas culturais, a crítica da instituição. Entre outras coisas, para colocar em evidência que a fantasia da “crítica institucional” integrada não é mais do que isso: uma fantasia interessada. Nem é fazendo curadoria nem dirigindo museus que se faz crítica, mas sim instituição. E quanto mais se predica contra ela estando dentro, tanto mais se favorece o jogo da falsa consciência em que esse esquema se produz.

4. Não é tarefa da crítica difundir a actividade nem da instituição nem do mercado de arte. A desculpa de que se “informa” o público – quando o que se faz é servir de instrumento de propaganda larvado – não é mais do que uma pura restrição, que serve o jornalismo cultural para instituir-se como agência de decisivo poder no seio do sistema arte.

5. O território para o exercício da crítica não pode ser outro que não o do ensaio – portanto o do livro ou talvez o das revistas especializadas. E não apenas porque na distância e autonomia (relativa, mas infinitamente superior à de outras instâncias) que permitem ambos os meios se abre um grau aproximado de independência – sem o qual não há crítica –, mas porque, em si mesma, a forma de ensaio – como modalidade específica da escrita orientada a fazer emergir as incompletudes de cada forma de discurso, a própria inclusa – é a única dotada para levar avante o trabalho desmantelador que é próprio da crítica.

6. Não é tarefa da crítica propagar a fé nos objectos que analisa: ao contrário, deve colocar em evidência as armadilhas sobre as quais essa fé se institui. A crítica não deverá servir para aumentar a – infundada e enganosa, até ao tutano – fé contemporânea na arte (a religião do nosso tempo, já dizia Nietzsche): Pelo contrário, deve contribuir para desestabilizar essa fé – secularizando criticamente a sua análise nos termos dos imaginários dominantes – tanto como este nas suas mãos.

E 7. A crítica deve aceitar e enfrentar todas as consequências do impacto de “tornar-se online” – que o cenário dos novos media procura – com a carga de perda de autoridade que implica confrontar-se com um espaço multiplicado de vozes. Diria que combinar esse efeito – de extravio da sua autoridade institucionalizada – com o compromisso radical de manter o seu trabalho desmantelador e secularizador, é o grande desafio que, por excelência, concerne à crítica nos nossos dias.


José Luis Brea

Profesor Titular de Estética e Teoría da Arte Contemporânea da Universidade Carlos III de Madrid. É director das revistas Estudios Visuales e ::salonKritik::. Crítico de arte independente.


Originalmente em: http://www.elcultural.es/

terça-feira, 27 de abril de 2010

A crítica como papel de bala

O Globo. Prosa & Verso. Rio de Janeiro, 24.4.2010, p. 2 e 3.


Flora Süssekind*


Reações de ressentimento nostálgico, e certo proselitismo agressivamente conservador, dominaram (até agora, salvo engano, sem maior ressonância) os necrológios de Wilson Martins, desde sua morte em 30 de janeiro deste ano. Mais do que avaliações de fato da trajetória e da prolífica contribuição documental do colunista e pesquisador, ou figurações autoelogiosas minimamente convincentes (mediadas pela do morto) para o crítico enquanto herói solitário e combativo, o que essas manifestações, vindas de segmentos diversos do campo literário, parecem evidenciar, ao contrário, é o apequenamento e a perda de conteúdo significativo da discussão crítica, assim como da dimensão social da literatura no país nas últi mas décadas.

Ao lado dessa retração, e em relação direta com ela, manifesta-se fenômeno curioso, espécie de negativo da situação — comentada à época por Roberto Schwarz — de dominância de uma cultura de esquerda durante os primeiros anos de ditadura militar no Brasil dos anos 1960. Agora há um conservadorismo que é francamente hegemônico. E envolve desde o retorno às figuras todo-poderosas do especialista monotemático, do agenciador com capacidade de trânsito inter-institucional e do colecionador de miudezas, às interlocuções preferencialmente de baixa densidade dos minicursos e palestras-espetáculo, do universo das regras técnicas e das normas genéricas e subgenéricas, fixadas acriticamente em oficinas de adestrame nto, à glamorização midiática de instituições autocomplacentes como a Academia Brasileira de Letras e correlatas, a formas variadas de culto a personalidades literárias, em geral mortas (e Clarice Lispector, Leminski, Ana Cristina Cesar têm sido objeto preferencial de dramaturgias miméticas, curadorias acríticas, ficções e comentários "à maneira de"), mas também em vida veem-se autores, mal lançados em livro, se converterem em máscaras que, com frequência, os aprisionam em marcas registradas mercadológicas de difícil descarte. Como se tornou, a meu ver, a trajetória tão distinta de Marcelo Mirisola e Patrícia Melo, para ficar em dois exemplos de escritores cuja produção poderia ir bem além do exercício automimético.

A idealização de Wilson Martins como imago exemplar do crítico, nesse contexto, não chega propriamente a espantar. Talvez a virulência com que ela tem sido feita nos elogios fúnebres, isso sim seja curioso. Uma virulência que supõe um conflito no entanto invisível, apenas virtual. Nada que se explique, entretanto, via clichê cordial. Pois não há lugar para cordialidade alguma num campo cuja retração e desimportância amesquinham e tornam ainda mais cruenta a disputa por posições, pelos mínimos sinais de prestígio e por quaisquer possibilidades de autorreferendo. Daí a truculência preventiva, propositadamente categórica, emocionalizada, nada especulativa. Espantosa talvez seja a falta de reação mesmo por part e daqueles cuja formação ou experiência crítica seria de molde a articular formas potenciais de dissensão. E que, ao contrário, recebem o auto apequenamento da crítica e do espaço para o debate público com passividade, resignação, quase desinteresse, incapazes de encontrar um campo ativo, mesmo minúsculo, de resistência ou interferência.

Talvez caiba, então, observação mais detida desses necrológios que figuram o colunista como um injustiçado, como uma espécie de herói solitário na pontualidade de suas resenhas semanais, em moldes idênticos, ao longo de cerca de seis décadas. Pois, se podem ser lidos como particularmente sintomáticos de uma redução do potencial de dissenso das intervenções no calor da hora, esses lamentos sinalizam, por outro lado, com singular acuidade, a perda de lugar social da crítica. O que os faz adotarem tom crescentemente exacerbado, agressivo, à medida que se percebem disfuncionais, e dispensáveis, mesmo em meio a um fluxo crescente de lançamentos, no que se refere à divulgação e afirmação de nomes e obras. Por vez es ainda lhes cabe o espaço de cerca de quarenta linhas de uma orelha ou de alguma declaração sobre a importância da obra. Ou o lugar meio enver gonhado de um posfácio ou nota introdutória. Não muito mais do que isso ou as duas ou três laudas de uma resenha. Qual o interesse de um comentário crítico quando se pode obter muito mais visibilidade para escritores e lançamentos por meio de entrevistas, notas em colunas sociais e participações em eventos de todo tipo?

Fabricam-se nomes e títulos vendáveis, vende-se, sobretudo o nome das editoras, e sua capacidade de descobrir "novos talentos" semestralmente, ao sabor das feiras literárias. E, nesse sentido, formas dissentâneas de percepção, como a crítica, se mostram particularmente incômodas. Formas personalistas e estabilizadoras, ao contrário, se esvaziadas, parecem continuar benvindas. Se adotado o perfil do colunista que "sabe ficar no seu lugar", que funciona, com voz opiniática, e sem maiores tensões, como moldura quase invisível, inconsequente, para o que o mercado editorial ou o próprio veículo quiser referendar. Se desse lugar sem qualquer ressonância não houver condições reais de intervenção, formulação de quest ões relevantes e expansão do mínimo espaço público talvez ainda disponível para um exercício crítico que não se confunda inteiramente com b usca de prestígio ou com um guia de consumo.

Talvez seja necessário, na discussão de um espaço ainda crítico para a crítica, matar mais uma vez Wilson Martins. Já que sua transformação em imago exemplar parece expor inequívoca vontade de retorno a algo próximo à tradição das Belas Letras, a um regime estável e hierarquizado de vozes e gêneros, a regras fixas de apreciação e prática textual, a um apagamento de novos espaços de legibilidade, espaços ainda não demarcados ou nomeados, e sugeridos por formas de compreensão expansivas, e não exclusivas, do campo da literatura. Um desejo de reierarquização e pureza que não parece sem sintonia com o temor de um universo sóciopolítico menos hierarquizado, com a expansão meio informe de uma classe média c ujo imaginário não parece ultrapassar uma coleção inesgotável de bens de consumo. E com uma extraordinária expansão das práticas digitais de escrita, acompanhada, paradoxalmente, no entanto, de uma quase invisibilidade coletiva dessas manifestações, de um encolhimento quase ao absurdo da esfera pública.

Destaco, então, a título de exemplo, dentre os textos sobre a morte de Martins que parecem operar de modo reativo um fechamento auto-afirmativo do campo literário, os de Alcir Pécora, professor da Unicamp, publicado no suplemento "Mais!" da "Folha de S. Paulo"; do escritor Miguel Sanches Neto, divulgado em publicação de circulação menor, e orientação orgulhosamente conservadora, o jornal curitibano "Rascunho"; e, por último, um post incluído no blog de Sérgio Rodrigues no portal de notícias do IG.

Apesar de assemelhar-se aos demais no elogio fúnebre, em que a um velho modelo de crítica — como afirmação personalista do gosto — corresponde um território embelezado do literário, este último é o menos enfático dos três, sublinhando, mais de uma vez, meio a medo, o fato de "quase nunca concordar" com Martins. Desvinculando-se, assim, de maiores filiações, aponta simultaneamente, no entanto, "uma concordância maior", ligada a certa capacidade demarcatória, pois Martins seria alguém "que ousava falar de literatura de dentro", que parecia habitar o campo letrado, posicionando-se na contramão das "verdades importadas de campos fora das letras". O que interessa a ele parece ser a estabilidade identitária, uma gar antia de intransitividade para o campo literário, o que a leitura de Wilson Martins invariavelmente oferecia, como uma ilha intemporal, propositada mente cega, sem lugar para a dúvida, em meio ao movimento relacional, autoinstabilizador da parte mais significativa do exercício crítico da segunda metade do século XX.

Ecos de uma vontade de retorno a um literário-apenas-literário se notam, igualmente, nas outras duas notas fúnebres. A de Miguel Sanches Neto não à toa fala de Martins como "o crítico", aquele que seria uma mistura de "bibliotecário" extremamente abrangente, voraz, pois o seu interesse seria por "toda a produção nacional", e de "leitor seletivo", cujo território independente, personalista, seria imune a influências, compadrios, regionalismos.

Uma espécie de “posição sem posição” que, se já passível de discussão pela simples inserção num veículo comercial, pelo exame do conjunto de resenhas produzidas por ele ao longo dos anos, não apontaria, na verdade, para atributo propriamente invejável na experiência analítica. Nesta, ao contrário, são a capacidade de elucidação da própria cadeia argumentativa, e das condições de constituição do sentido e de formulação do juízo, ao lado da articulação de relações críticas significativas com a hora histórica alguns dos fatores preponderantes. E não uma sonhada disponibilidade sem limites ou uma capacidade de exaustiva amostragem e arquivamento da produção editorial.

O texto de Alcir Pécora opera exemplarização semelhante da figura do crítico, a começar do elogio duplo contido no título do artigo publicado na "Folha": "Erudito dissonante". Uma erudição que contrasta às áreas que lhe parecem dominantes nos departamentos de Letras — os estudos teóricos e os estudos culturalistas — e que figuram como oponentes surdos em sua reavaliação do trabalho de Wilson Martins. A vontade de afirmação da importância do crítico morto leva-o, nessa linha, a comparar o seu trabalho ao de Darnton e Chartier, apontando papel antecipador em seu interesse pela cultura material e pela história do livro e da leitura. Uma coisa, porém, é compilar material que poderá se tornar relevante segundo outra perspectiva de leitura, outra bem diversa é constituir conscientemente um objeto de estudo, um ponto de vista anaítico, uma operação críti ca, ou a avaliação de um campo disciplinar.

Se não é possível ver crítica ou cronologicamente em Wilson Martins um precursor do trabalho de Henri-Jean Martin e Lucien Febvre ou da teoria das materialidades da comunicação, há outra ordem de atributos que levam Pécora a destacá-lo. Uma não-cordialidade propositada (aspecto talvez discutível, apenas aparente, se observam-se com cuidado os não violentamente criticáveis por ele e o que se resguarda, no seu caso, via antagonização); a truculência verbal (também não exclusiva, bastando observar, nesse sentido, alguns dos colunistas mais populares e longevos em diversas áreas e meios de comunicação); o orgulho de estar sozinho (quando, ao contrário, desde os anos de estabilização democrática, no país, são figuras marcadas exatamente por um conservadorismo ativo que têm se mostrado legião e emprestado a respeitabilidade de nomes já feitos às págin as de entretenimento e opinião dos jornais).

Quando os tempos políticos se mostram outros, e uma homogeneização impositiva parece barrar as cisões necessárias à experiência crítica do próprio tempo, quando já não se constituem, com facilidade, margens articuladas de resistência e situações definidas e consequentes de conflito, talvez seja mais fácil converter a crítica em operação reativa, disfuncional, mas virulenta, cujo motivo condutor passa a ser o retorno autocongratulatório a um passado de glórias, no qual os textos de intervenção podiam ainda provocar controvérsia, e o prestígio das Belas Letras enobrecia igualmente críticos e escritores.

O que parece, no entanto, nostálgico, reativo, talvez não aponte exclusivamente para um período anterior à formação da crítica moderna no Brasil, mas para uma reprodução esvaziada de sentido, e desligada de vínculos efetivos com a experiência histórica, de comportamentos, práticas de escrita e certo culto à autodivulgação e à vida literária que parecem se expandir (em prêmios, concursos, revistas, blogs, antologias, bolsas de criação) em movimento inverso ao da restrição que se opera no campo da produção e da compreensão da literatura, ao da quase total desimportância de livros e mais livros que se acumulam sem maior potencial de instabilização, sem provocar qualquer desconforto, sem fazer pensar. Uma restrição que talvez indique uma incapacidade não só da crítica, mas do campo literário, de modo geral, de reinventar a sua sociabilidade, de p roduzir condições outras para a própria prática.

Lembro, nesse sentido, a resposta de Jacques Rancière quando indagado, em entrevista recente, a respeito de uma série de escritores contemporâneos. Sem desqualificá-los, comentaria, no entanto, distinguindo a atual da ficção de até meados do século XX: "Penso simplesmente que a literatura não inventa hoje categorias de decifração da experiência comum". E concluindo numa espécie desdramatizada de beco sem saída: "As formas de narratividade, de expressividade, de inteligibilidade que ela inventou foram apropriadas por outros discursos ou outras artes, ou banalizadas pelas formas de comunicação".

Para além do quadro local, o que Rancière sublinha, em perspectiva mundial, é a aparente interrupção de um período de vigorosa contribuição dos estudos literários às ciências humanas (como ocorreu ao longo do século passado), e de poder significativo de interferência e transformação do literário sobre outras práticas artísticas. O que não apenas no Brasil parece encontrar resposta compensatória à sua desnecessidade, e a uma fraca ressonância, em premiações, incentivos, edições de luxo. E numa ficcionalização autotélica de uma espécie de território exclusivo para o literário e sua crítica, de lugar sem condicionamentos ou ecos, que, hipoteticamente sem interferência de outras artes e disciplinas, s e mostra, por isso mesmo, incapaz de se repensar e de estabelecer ligações mais consequentes com o próprio tempo.

Curiosamente, como já demonstraram há alguns anos George Kornis e Fábio Sá Earp, e mais recentemente Jaime Mendes, em estudos sobre a economia do livro, se, em termos de oferta, de número de exemplares, o mercado literário vem apresentando um crescimento de mais de 30% desde 2004, isso não se tem feito acompanhar, todavia, nem do aumento de alcance dessa produção, nem de faturamento por parte das editoras, nem de capacidade de absorção por parte de consumidores e bibliotecas. E é como volta a um jogo entre iguais, a um território mais restrito, homogêneo e regulado, de relevância previamente estabelecida, como volta às Belas Letras que se pode compreender a virulenta ressurreição de Wilson Martins, o desejo de Sérgio Rodrigues de um campo puro do literário, a ideia de uma amostragem irrestrita como a de Miguel Sanches Neto (pois previamente demarcada p or gêneros, dicções, territorializações diversas), o sonho com um tempo em que "a literatura e o crítico não pareciam ter que sair de cena", para voltar ao texto melancólico e, a meu ver, equivocado, de Pécora.

E, no entanto, talvez seja exatamente desse "lugar estreito demais", e pouco público, desse ponto cego que talvez não se veja em jornais e nas manifestações mais concorridas da vida literária, que caiba à crítica e à literatura definir outros espaços de atuação e trânsito, lugares não demarcados (retroativamente) pelo beletrismo redivivo, nem pelas identidades estáveis do resenhista, do prefaciador, do professor judicativo, do ficcionista auto-mimético. Mas em movimentos de deslocamento nos quais a literatura e a crítica se vejam forçadas, como observa Agamben ao pensar sobre o contemporâneo, a mergulharem "a pena nas trevas do presente". E a saírem de si no sentido da figuração de novas formas de visualização e radicalidade. À maneira do que faz Carlito Azevedo ao reinventar a própria dicção em meio à tensão entre o poema como narrativa e per curso e a sua dramatização interna em estações imagéticas instáveis. À maneira do que fizeram Bia Lessa e Maria Borba, em bela operação crítica, ao amputarem cenicamente, em "Formas breves", a obra de Tchekhov, Kafka, Thomas Bernhard, Sérgio e André Sant’Anna, Almodóvar e mais e mais. À maneira da concepção musical de Rodolfo Caesar, na qual a reflexão em livro sobre a composição "Círculos ceifados", funciona como fator de variação operatória, como obra suplementar por meio da qual escrita e escuta se desdobram e interferem, sem coincidência, potencializando o campo de tensões em que se investiga a experiência composicional. Ou, para ficar em mais um exemplo apenas, como no enfrentamento quase de estrangeiro de Nuno Ramos diante da matéria verbal que, em livros como "Cujo" (Editora 34) e "Ó" (Iluminuras) , adquire um nível singular de presença, parecendo intensificar-se exatamente pelo lugar de fora em que se processam essas intervenções.

*FLORA SÜSSEKIND é crítica literária, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e professora de teoria do teatro da UNI-Rio. Autora de "A voz e a série" e "O Brasil não é longe daqui", entre outros.

Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/default.asp Acesso em: 24 abr. 2010.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

quinta-feira, 4 de março de 2010

A Crítica Teatral - José de Alencar: Mãe

Publicado na "Revista Dramática", seção do Diário do Rio de Janeiro, 29 mar. 1860.


Escrever crítica e crítica de teatro não e só uma tarefa difícil, é também uma empresa arriscada.
A razão é simples. No dia em que a pena, fiel ao preceito da censura, toca um ponto negro e olvida por momentos a estrofe laudatória, as inimizades levantam-se de envolta com as calúnias.

Então, a crítica aplaudida ontem, é hoje ludibriada, o crítico vendeu-se, ou por outra, não passa de um ignorante a quem por compaixão se deu algumas migalhas de aplauso.
Esta perspectiva poderia fazer-me recuar ao tomar a pena do folhetim dramático, se eu não colocasse acima dessas misérias humanas a minha consciência e o meu dever. Sei que vou entrar numa tarefa onerosa; sei-o, porque conheço o nosso teatro, porque o tenho estudado materialmente; mas se existe uma recompensa para a verdade, dou-me por pago das pedras que encontrar em meu caminho.
Protesto desde já uma severa imparcialidade, imparcialidade de que não pretendo afastar-me uma vírgula simples revista sem pretensão a oráculo, como será este folhetim, dar-lhe-ei um caráter digno das colunas em que o estampo. Nem azorrague, nem luva de pelica; mas a censura razoável, clara e franca, feita na altura da arte da crítica.
Estes preceitos, que estabeleço como norma do meu proceder, são um resultado das minhas idéias sobre a imprensa, e de há muito que condeno os ouropéis da letra redonda, assim como as intrigas mesquinhas, em virtude de que muita gente subscreve juízos menos exatos e menos de acordo com a consciência própria.
Se faltar a esta condição que me imponho, não será um atentado voluntário contra a verdade, mas erro de apreciação.
As minhas opiniões sobre o teatro são ecléticas em absoluto. Não subscrevo, em sua totalidade, as máximas da escola realista, nem aceito, em toda a sua plenitude, a escola das abstrações românticas; admito e aplaudo o drama como forma absoluta do teatro, mas nem por isso condeno as cenas admiráveis de Corneille e de Racine.
Tiro de cada coisa uma parte, e faço o meu ideal de arte, que abraço e defendo.

Entendo que o belo pode existir mais revelado em uma forma menos imperfeita, mas não é exclusivo de uma só forma dramática. Encontro-o no verso valente da tragédia, como na frase ligeira e fácil com que a comédia nos fala ao o espírito.

Com estas máximas em mão — entro no teatro. É este o meu procedimento; no dia em que me puder conservar nessa altura, os leitores terão um folhetim de menos, e eu mais um argumento de que cometer empresas destas, não é uma tarefa para quem não tem o espírito de um temperamento superior.

Sirvam estas palavras de programa.

Se eu quisesse avaliar a nossa existência moral pelo movimento atual do teatro, perderíamos no paralelo.

Ou influência ou estação, ou causas estranhas, dessas que transformam as situações para dar nova direção às coisas, o teatro tem caminhado por uma estrada difícil e escabrosa.

Quem escreve estas palavras tem um fundo de convicção, resultado do estudo com que tem acompanhado o movimento do teatro; e tanto mais insuspeito, quanto que é um dos crentes mais sérios e verdadeiros desse grande canal de propaganda.

Firme nos princípios que sempre adotou, o folhetinista que desponta, dá ao mundo, como um colega de além-mar, o espetáculo espantoso de um crítico de teatro que crê no teatro.

E crê: se há alguma coisa a esperar para a civilização é desses meios que estão em contacto com os grupos populares. Deus me absolva se há nesta convicção uma utopia de imaginação cálida.

Estudando, pois, o teatro, vejo que a atualidade dramática não é uma realidade esplêndida, como a desejava eu, como a desejam todos os que sentem em si uma alma e uma convicção.

Já disse, essa morbidez é o resultado de causas estranhas, inseparáveis talvez — que podem aproximar o teatro de uma época mais feliz.

Estamos com dois teatros em ativo; uma nova companhia se organiza para abrir em pouco o teatro Variedades; e essa completará a trindade dramática.

No meio das dificuldades com que caminha o teatro, anuncia-se no Ginásio um novo drama original brasileiro. A repetição dos anúncios, o nome oculto do autor, as revelações dúbias de certos oráculos, que os há por toda parte, prepararam a expectativa pública para a nova produção nacional.

Veio ela enfim.

Se houve verdade nas conversações de certos círculos, e na ânsia com que era esperado o novo drama, foi que a peça estava acima do que se esperava.

Com efeito desde que se levantou o pano o público começou a ver que o espírito dramático, entre nós, podia ser uma verdade. E quando a frase final caiu esplêndida no meio da platéia, ela sentiu que a arte nacional entrou em um período mais avantajado de gosto e de aperfeiçoamento.

Esta peça intitula-se Mãe.

Revela-se à primeira vista que o autor do novo drama conhece o caminho mais curto do triunfo; que, dando todo o desenvolvimento à fibra da sensibilidade, praticou as regras e as prescrições da arte sem dispensar as sutilezas de cor local.

A ação é altamente dramática; as cenas sucedem-se sem esforço, com a natureza da verdade; os lances são preparados corri essa lógica dramática a que não podem atingir as vistas curtas.

Altamente dramática é a ação, disse eu; mas não pára aí; também altamente simples.

Jorge é um estudante de medicina, que mora em um segundo andar com uma escrava apenas — a quem trata carinhosamente e de quem recebe provas de um afeto inequívoco.

No primeiro andar, moram Gomes, empregado público, e sua filha Elisa. A intimidade da casa trouxe a intimidade dos dois vizinhos, Jorge e Elisa, cujas almas, ao começar o drama, ligam-se já por um fenômeno de simpatia.

Um dia, a doce paz, que fazia a ventura daquelas quatro existências, foi toldada por um corvo negro, por um Peixoto, usurário, que vem ameaçar a probidade de Gomes com a maquinação de um trama diabólico e muito comum, infelizmente, na humanidade.

Ameaçado em sua honra, Gomes prepara um suicídio que não realiza; entretanto, envergonhado por pedir dinheiro, porque com dinheiro removia a tempestade iminente, deixa à sua filha o importante papel de salvá-lo e salvar-se.


Elisa, confiada no afeto que a une a Jorge vai expor-lhe a situação; esse compreende a dificuldade, e, enquanto espera a quantia necessária do Dr. Lima, um caráter nobre da peça, trata de vender, e ao mesmo Peixoto, a mobília de sua casa.

Joana, a escrava, compreende a situação, e, vendo que o usurário não dava a quantia precisa pela mobília de Jorge, propõe-se a uma hipoteca; Jorge repele ao princípio o desejo de sua escrava, mas a operação tem lugar, mudando unicamente a forma de hipoteca para a de venda, venda nulificada desde que o dinheiro emprestado voltasse a Peixoto.

Volta a manhã serena depois de tempestade procelosa; a probidade e a vida de Gomes estão salvas.
Joana, podendo escapar um minuto a seu senhor temporário, vem na manhã seguinte visitar Jorge.

Entretanto o Dr. Lima tem tirado as suas malas da alfândega e traz o dinheiro a Jorge. Tudo vai, por conseguinte, voltar ao seu estado normal.

Mas Peixoto, não encontrando Joana em casa, vem procurá-la à casa de Jorge, exigindo a escrava que havia comprado na véspera. O Dr. Lima não acreditou que se tratasse de Joana, mas Peixoto, forçado a declarar o nome, pronuncia-o. Aqui a peripécia é natural, rápida e bem conduzida; o Dr. Lima ouve o nome, dirige-se para a direita por onde acaba de entrar Jorge.

— Desgraçado, vendeste tua mãe!
Eu conheço poucas frases de igual efeito. Sente-se uma contração nervosa ao ouvir aquela revelação inesperada. O lance é calculado com maestria e revela pleno conhecimento da arte no autor.

Ao conhecer sua mãe, Jorge não a repudia; aceita-a em face da sociedade, com esse orgulho sublime que só a natureza estabelece e que faz do sangue um título.

Mas Joana, que forcejava sempre por deixar corrido o véu do nascimento de Jorge, na hora que este o sabe, aparece envenenada. A cena é dolorosa e tocante, a despedida para sempre de um filho, no momento em que acaba de conhecer sua mãe, e por si uma situação tormentosa e dramática.
Não é bem acabado este tipo de mãe que sacrifica as carícias que poderia receber de seu filho, a um escrúpulo de que a sua individualidade o fizesse corar.

Esse drama, essencialmente nosso, podia, se outro fosse o entusiasmo de nossa terra, ter a mesma nomeada que o romance de Harriette Stowe — fundado no mesmo teatro da escravidão.

Os tipos acham-se ali bem definidos, e a ligação das frases não pode ser mais completa.

O veneno que Joana bebe, para aperfeiçoar o quadro e completar o seu martírio tocante, é o mesmo que Elisa tomara das mãos de seu pai, e que a escrava encontrou. sobre uma mesa em casa de Jorge, para onde a menina o levara.

Há frases lindas e impregnadas de um sentimento doce e profundo; o diálogo é natural e brilhante mas desse brilho que não exclui a simplicidade, e que não respira o torneado bombástico.
O autor soube haver-se com a ação, sem entrar em análise. Descoberta a origem de Jorge, a sociedade dá o último arranco em face da natureza, pela boca de Gomes, que tenta recusar sua filha prometida a Jorge.

Repito-o: o drama é de um acabado perfeito, e foi uma agradável surpresa para os descrentes da arte nacional.
Ainda oculto o autor, foi saudado por todos com a sua obra; feliz que é, de não encontrar patos no seu Capitólio.
A Sr.ª Velluti e o Sr. Augusto disseram com felicidade os seus papéis; a primeira, dando relêvo ao papel de escrava com essa inteligência e sutileza que completam os artistas; o segundo, sustentando a dignidade do Dr. Lima na altura em que a colocou o autor.
A Sr. ª Ludovina não discrepou no caráter melancólico de Elisa; todavia, parecia-me que devia ter mais animação nas suas transições, que é o que define o claro-escuro.
O Sr. Heller, pondo em cena o caráter do empregado público, teve momentos felizes, apesar de lhe notar uma gravidade de porte, pouco natural, às vezes.
Há um meirinho na peça desempenhado pelo Sr. Graça, que corno bom ator cômico, agradou e foi aplaudido. O papel é insignificante, mas aqueles que têm visto o distinto artista, adivinham o desenvolvimento que a sua veia cômica lhe podia dar.
Jorge foi desempenhado pelo Sr. Paiva que, trazendo o papel a altura de seu talento, fez-nos entrever uma figura singela e sentimental.
O Sr. Militão completa o quadro com o papel de Peixoto, onde nos deu um usurário brutal e especulador.
A noite foi de regozijo para aqueles que, amando a civilização pátria , estimam que se faça tão bom uso da língua que herdamos. Oxalá que o exemplo se espalhe.
Na próxima revista tocarei no teatro de S. Pedro e no das Variedades, se já houver encetado a sua carreira.
Entretanto, fecho estas páginas, e deixo que o leitor, rigor da estação, vá descansar um pouco, não à sombra como Títiro, mas entre os nevoeiros de Petrópolis, ou nas montanhas da velha Tijuca.

Fonte:Wikisource, a biblioteca livre

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O que a crítica? PARTE I

espaço michel foucault – www.filoesco.unb.br/foucault

O que é a crítica?
[Crítica e Aufklärung]
Michel Foucault

Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Société française de philosophie, Vol. 82, nº
2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de 1978). Tradução de Gabriela
Lafetá Borges e revisão de Wanderson flor do nascimento.

Henri Gouhier - Senhoras, Senhoritas, Senhores, gostaria, de início, de agradecer ao Sr. Michel Foucault por ter inscrito esta sessão no tempo de estudos de um ano muito atribulado, já que nós o tomamos, eu não diria um dia depois, mas quase dois dias depois de uma longa viagem ao Japão. É o que explica que a convocação enviada para esta reunião tão lacônica; mas desse fato a comunicação de Michel Foucault é uma surpresa e, como se pode pensar que é uma boa surpresa, eu não farei esperar mais tempo ao prazer de ouvi-lo.

Michel Foucault - Eu vos agradeço infinitamente por ter me convidado a esta reunião, frente a esta Sociedade. Creio já ter feito uma comunicação há dez anos sobre um tema que era O que é um autor? Para a questão que gostaria de vos falar hoje, eu não dei título. O Sr. Gouhier bem quis dizer a vocês com indulgência que é em função da minha estada no Japão. Para dizer a verdade, é uma muito amável atenuação da verdade. Digamos que, efetivamente, até esses últimos dias, por pouco não tinha encontrado título; ou antes, tinha um que me perseguia mas que eu não queria escolher. Vocês verão por que: foi indecente. Na realidade, a questão que gostaria de falar a vocês, e que quero sempre vos falar, é: O que é a crítica? Seria preciso tentar manter alguns propósitos em torno desse projeto que não cessa de se formar, de se prolongar, de renascer nos confins da filosofia, sempre próximo dela, sempre contra ela, às suas custas, na direção de uma filosofia por vir, no lugar talvez de toda filosofia possível. E parece que entre a alta empreitada kantiana e as pequenas atividades polêmico-profissionais que trazem esse nome de crítica, me parece que houve no Ocidente moderno (a datar, grosseiramente, empiricamente, nos séculos XVXVI) uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente, uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também, e que se poderia chamar, digamos, de atitude crítica. É claro, vocês ficarão espantados ao ouvir dizer que há alguma coisa como uma atitude crítica e que seria específica da civilização moderna, então que houve tantas críticas, polêmicas etc. e que mesmo os problemas kantianos têm, sem dúvida, origens bem mais longínquas que aqueles séculos XV-XVI. Ficarão espantados também de ver que se tenta procurar uma unidade para essa crítica, que ela parece prometida pela natureza, pela função, eu ia dizer pela profissão, à dispersão, à dependência, à pura heteronomia. Além disso, a crítica existe apenas em relação a outra coisa que não ela mesma: ela é instrumento, meio para um devir ou uma verdade que ela não saberá e que ela não será, ela é um olhar sobre um domínio onde quer desempenhar o papel de polícia e onde não é capaz de fazer a lei. Tudo isso faz dela uma função que está subordinada por relação ao que constituem positivamente a filosofia, a ciência, a política, a moral, o direito, a literatura etc. E, ao mesmo tempo, quais que sejam os prazeres ou as compensações que acompanham essa curiosa atividade de crítica, parece que ela traz, de modo suficientemente regular, quase sempre, não somente alguma rigidez de utilidade que ela reivindica, mas também que ela seja subtendida por uma sorte de imperativo mais geral - mais geral ainda que aquela de afastar os erros. Há alguma coisa na crítica que se aparenta à virtude. E de uma certa maneira, o que eu gostaria de dizer a vocês era da atitude crítica como virtude em geral. Para fazer a história dessa atitude crítica, há vários caminhos. Eu gostaria simplesmente de sugerir a vocês aquele que é um caminho possível, ainda uma vez, dentre outros. Proporei a seguinte variação: a pastoral cristã, ou a igreja cristã enquanto ostentava uma atividade precisamente e especificamente pastoral, desenvolveu esta idéia - singular, creio eu, e absolutamente estranha à cultura antiga - que cada indivíduo, quais sejam sua idade, seu estatuto, e isso de uma extremidade a outra da sua vida e até no detalhe de suas ações, devia ser governado e devia se deixar governar, isto é conduzir à sua salvação, por alguém que o ligue numa relação global e, ao mesmo tempo, meticulosa, detalhada, de obediência. E esta operação de direcionamento à salvação numa relação de obediência a alguém deve se fazer numa tripla relação com a verdade: verdade entendida como dogma; verdade também na medida em que esse direcionamento implica um certo modo deconhecimento particular e individualizante dos indivíduos; e, enfim, na medida em que esse  direcionamento se desdobra como uma técnica reflexiva comportando regras gerais, conhecimentos particulares, preceitos, métodos de exame, confissões, entrevistas etc. Além do que, não se pode esquecer o que, durante séculos, se chamou na igreja grega technè technôn e na igreja romana latina ars artium, precisamente a direção de consciência; a arte de
governar os homens. Essa arte de governar, é claro, ficou por muito tempo ligada a práticas relativamente limitadas e finalmente, mesmo na sociedade medieval, ligada à existência conventual, ligada à e praticada sobretudo em grupos espirituais relativamente restritos. Mas eu creio que a partir do século XV e desde antes da Reforma, pode-se dizer que houve uma verdadeira explosão da arte de governar os homens, explosão entendida em dois sentidos. Deslocamento de início em relação a seu foco religioso, digamos se vocês querem laicização, expansão na sociedade civil desse tema da arte de governar os homens e dos métodos para fazê-la. E depois, num segundo sentido, multiplicação dessa arte de governar em domínios variados: como governar as crianças, como governar os pobres e os mendigos, como governar uma família, uma casa, como governar os exércitos, como  governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados, como governar seu próprio corpo, como governar seu próprio espírito. Como governar, acredito que esta foi uma das questões fundamentais do que se passou no século XV ou no XVI. Questão fundamental a qual respondeu a multiplicação de todas as artes de governar - arte pedagógica, arte política, arte econômica, se vocês querem - e de todas as instituições de governo, no sentido amplo que tinha a palavra governo nessa época. No entanto, essa governamentalização, que me parece tão característica dessas sociedades do Ocidente europeu no século XVI, não pode estar dissociada, parece-me, da questão de "como não ser governado?". Eu não quero dizer com isso que, na governamentalização, seria opor numa sorte de face a face a afirmação contrária, "nós não queremos ser governados, e não queremos ser governados absolutamente". Eu quero dizer que, nessa grande inquietude em torno da maneira de governar e na pesquisa sobre as maneiras de governar, localiza-se uma questão perpétua que seria: "como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles"; e se se dá a esse movimento da governamentalização, da sociedade e dos indivíduos ao mesmo tempo, a inserção histórica e a amplitude que creio ter sido a sua, parece que se poderia colocar deste lado o que se chamaria atitude crítica. Em face, ou como contra-partida, ou antes como parceiro e adversário ao mesmo tempo das artes de governar, como maneira de suspeitar dele, de o recusar, de o limitar, de lhe encontrar uma justa medida, de os transformar, de procurar escapar a essas artes de governar ou, em todo caso, deslocá-lo, a título de reticência essencial, mas também e por aí mesmo como linha de desenvolvimento das artes de governar, teria tido qualquer coisa nascida na Europa nesse momento, uma sorte de forma cultural geral, ao mesmo tempo atitude moral e política, maneira de pensar etc. e que eu chamaria simplesmente arte de não ser governado ou ainda arte de não ser governado assim e a esse preço. E eu proporia então, como uma primeira definição da crítica, esta caracterização geral: a arte de não de tal forma governado. Vocês me dirão que esta definição é ao mesmo tempo bem geral, bem vaga, bem fluida. Seguramente! Mas eu creio mesmo assim que ela permitiria marcar alguns pontos de ancoragem precisos do que eu tentei apelidar atitude crítica. Pontos de ancoragem históricos, é claro, e que se poderia fixar assim: 1º. Primeiro ponto de ancoragem: numa época onde o governo dos homens era essencialmente uma arte espiritual, ou uma prática essencialmente religiosa ligada à autoridade de uma Igreja, ao magistério de uma Escritura, não querer ser governado desta forma, era essencialmente buscar na Escritura uma outra relação que não aquela ligada ao funcionamento da lição de Deus, não querer ser governado era uma certa maneira de negar, recusar, limitar (digam como quiserem) o magistério eclesiástico, era a volta à Escritura, era a questão do que é autêntico na Escritura, do que foi efetivamente escrito na Escritura, era a questão de qual é a sorte de verdade que diz a Escritura, como ter acesso a esta verdade da Escritura na Escritura e a despeito talvez do escrito e até o que se chega com a questão finalmente mais simples: a Escritura era verdadeira? E em suma, de Wycliffe a Pierre Bayle, a crítica desenvolveu-se por um lado, que eu acredito capital e não exclusivo certamente, em relação à Escritura. Digamos que a crítica é historicamente bíblica.

2º. Não querer ser governado, está aí o segundo ponto de ancoragem, não querer ser governado assim, não é não mais querer aceitar essas leis porque elas são injustas, porque, sob sua antigüidade ou sob o seu brilho mais ou menos ameaçador que lhes dá a soberania de hoje, elas escondem uma ilegitimidade essencial. A crítica é então, desse ponto de vista, em face do governo e à obediência que ele exige, opor direitos universais e imprescritíveis, aos quais todo governo, qual seja ele, que se trate do monarca, do magistrado, do educador, do pai de família, deverá se submeter. Em suma, se vocês querem, reencontra-se aí o problema do direito natural. O direito natural não é certamente uma invenção da renascença, mas ele tomou, a partir do século XVI, uma função crítica que ele conservara sempre. À questão "como não ser governado?" responde-se dizendo: quais são os limites do direito de governar? Digamos que aí, a crítica é essencialmente jurídica.
E enfim, "não querer ser governado", é claro, não é aceitar como verdade, e aqui eu passarei muito rápido, o que uma autoridade diz ser verdadeiro, ou ao menos não é aceitar isso senão se se considera, por si mesmo, boas razões para aceitar. E desta vez, a crítica toma seu ponto de ancoragem no problema da certeza em face da autoridade. A Bíblia, o direito, a ciência; a escritura, a natureza, a relação a si; o magistério,  lei, a autoridade do dogmatismo. Vê-se como o jogo da governamentalização e da crítica, uma em relação a outra, deram lugar a fenômenos que são, creio eu, capitais na história da cultura ocidental, que trata-se do desenvolvimento das ciências filológicas, trata-se do desenvolvimento da reflexão, da análise jurídica, da reflexão metodológica. Mas, sobretudo, vê-se que o foco da crítica é essencialmente o feixe de relações que amarra um ao outro, ou um a dois outros, o poder, a verdade e o sujeito. E se a governamentalização é mesmo esse movimento pelo qual se tratasse na realidade mesma de uma prática social de sujeitar os indivíduos por mecanismos de poder que reclamam de uma verdade, pois bem, eu diria que a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade; pois bem, a crítica será a arte da inservidão voluntária, aquela da  indocilidade refletida. A crítica teria essencialmente por função a desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade. Essa definição, malgrado seu caráter ao mesmo tempo empírico, aproximativo, deliciosamente longínquo em relação à história que ela sobrevoa, eu teria a arrogância de pensar que ela não é muito diferente daquela que Kant dava: não aquela da crítica, mas justamente de alguma outra coisa. Não é muito longe em definitivo da definição que ele dava da Aufklärung. É característico, com efeito, que, em seu texto de 1784 sobre o que é a Aufklärung, ele definiu Aufklärung em relação a um certo estado de menoridade no qual estaria mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade. Em segundo lugar, ele definiu essa menoridade, ele a caracterizou por uma certa incapacidade na qual a humanidade estaria retida, incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem alguma coisa que fosse justamente a direção de um outro, e ele emprega leiten que tem um sentido religioso historicamente bem definido. Em terceiro lugar, creio que é característico que Kant tenha  definido essa incapacidade por uma certa correlação entre uma autoridade que se exerce e que mantém a humanidade nesse estado de menoridade, correlação entre este excesso de autoridade e, de outra parte, algo que ele considera, que ele chama uma falta de decisão e de coragem. E por conseqüência essa definição da Aufklärung não vai ser simplesmente uma espécie de definição histórica e especulativa; terá nessa definição da Aufklärung alguma
coisa que se revela um pouco ridícula sem dúvida de chamar de predicação, mas é em todo caso um apelo à coragem que ele lança nessa descrição da Aufklärung. Não se pode esquecer que era um artigo de jornal. Teria que fazer um estudo sobre as relações da filosofia com o jornalismo a partir do fim do século XVIII... A menos que ele tenha sido feito, mais eu não estou certo disso... É muito interessante ver a partir de qual momento os filósofos intervieram nos jornais para dizer algo que é para eles filosoficamente interessante
e que, no entanto, se inscreve numa certa relação com o público com efeitos de apelo. E enfim, é característico que, nesse texto sobre a Aufklärung, Kant dá como exemplos de retenção da menoridade da humanidade, e por conseqüência, como exemplos, pontos sobre os quais a Aufklärung deve erguer esse estado de menoridade e maioridade em, certo tipo, os homens, precisamente a religião, o direito e o conhecimento. O que Kant descrevia como a Aufklärung, é o que eu tentei até agora descrever como a crítica, como essa atitude crítica que se vê aparecer como atitude específica no Ocidente a partir, creio, do que foi historicamente o grande processo de governamentalização da sociedade. Com relação a essa Aufklärung (cujo emblema, vocês bem o sabem e Kant lembra, é "sapere aude", não sem que uma outra voz, aquela de Frederico II, diz em contraponto "que eles raciocinem tanto quanto querem contanto que obedeçam"), em todo caso, com relação a esse Aufklärung, como Kant vai definir a crítica? Ou em todo caso, pois eu não tenho a pretensão de retomar o que foi o projeto crítico kantiano no seu rigor filosófico, eu não me permitiria, diante de um tal auditório de filósofos, não sendo eu mesmo filósofo, sendo mal um crítico, com relação a essa Aufklärung, como se poderia situar a crítica, propriamente dita? Se efetivamente Kant chama todo esse movimento crítico que precedeu a Aufklärung, como vai situar, ele, o que entende pela crítica? Eu diria, e aqui estão coisas completamente infantis, que em relação à Aufklärung, a crítica será aos olhos de Kant o que ele dirá ao saber: você sabe bem até onde pode saber? raciocina tanto quanto querias, mas você sabe bem até onde pode raciocinar sem perigo? A crítica dirá, em suma, que está menos no que
nós empreendemos, com mais ou menos coragem, do que na idéia que nós fazemos do nosso conhecimento e dos seus limites, que aí vai a nossa liberdade, e que, por conseqüência, ao invés de deixar dizer por um outro "obedeça", é nesse momento, quando se terá feito do seu próprio conhecimento uma idéia justa, que se poderá descobrir o princípio da autonomia e que não se terá mais que escutar o obedeça; ou antes que o obedeça estará fundado sobre a autonomia mesma. Eu não pretendo mostrar a oposição que haveria em Kant entre a análise da Aufklärung e o projeto crítico. Isso seria, eu creio, fácil de mostrar que, para Kant, essa verdadeira coragem de saber que foi invocada pela Aufklärung, esta mesma coragem de saber consiste em reconhecer os limites do conhecimento; e seria fácil mostrar que para ele a autonomia está longe de ser oposta à obediência aos soberanos. Mas disso não fica menos que Kant fixou para a crítica em seu empreendimento de desassujeitamento em relação ao jogo do poder e da verdade, como tarefa primordial, como prolegômeno a toda Aufklärung presente e futura, de conhecer o conhecimento.
Eu não gostaria de insistir por mais tempo sobre as implicações desse tipo de deslocamento entre Aufklärung e crítica que Kant quis marcar por aí. Gostaria simplesmente de insistir sobre esse aspecto histórico do problema que nos é sugerido por isto que se passou no século XIX. A história do século XIX deu bem mais engrenagens à continuação do empreendimento crítico tal como Kant o havia situado de algum modo em
recuo em relação a Aufklärung, que a alguma coisa como a Aufklärung ele mesmo. Dito de outra forma, a história do século XIX - e, claro, a história do século XX, mais ainda - parecia dever, senão dar razão a Kant ao menos oferecer uma solidificação, a essa nova atitude crítica, a essa atitude crítica em retirada por relação a Aufklärung e que Kant abriu a possibilidade. Essa tomada histórica que parecia ser oferecida à crítica kantiana muito mais do que a coragem da Aufklärung, era simplesmente esses três traços fundamentais:
primeiramente, uma ciência positivista, isto é fazendo fundamentalmente confiança nela mesma, quando ainda mesmo ela se achava cuidadosamente crítica em relação a cada um de seus resultados; em segundo lugar, o desenvolvimento de um Estado ou de um sistema estático que se dava, a si próprio, como razão e como racionalidade profunda da história e que, por outro lado, escolhia como instrumentos procedimentos de racionalização da economia e da sociedade; daí, o terceiro traço, à costura desse positivismo científico e do
desenvolvimento dos Estados, uma ciência de um Estado ou um estadismo, se vocês querem. Tece-se entre eles toda uma rede de relações cerradas na medida em que a ciência vai desempenhar um papel cada vez mais determinante no desenvolvimento das forças produtivas, na medida em que, por outro lado, os poderes do tipo estático vão o exercer cada vez mais por entre conjuntos técnicos refinados. Daí, o fato de que a questão de 1784, o que é a Aufklärung?, ou antes a maneira que Kant, em relação a essa questão e a resposta que dava a ela, tentou situar seu empreendimento crítico, essa interrogação sobre as relações entre Aufklärung e Crítica vai tomar legitimamente o modo de uma desconfiança ou, em todo caso, de uma interrogação cada vez mais suspeita: de quais excessos de poder, de qual governamentalização, tanto mais incontornável que ela se justifique e a razão, esta razão ela mesma não é historicamente responsável? Ora, o devir dessa questão, creio eu, não foi absolutamente o mesmo na Alemanha e na França, e isso pelas razões históricas que seria preciso analisar já que são complexas. Poder-se-ia dizer grosso modo: é que, menos talvez por causa do desenvolvimento recente de um belo Estado novinho e racional na Alemanha do que por causa do já envelhecido vínculo das Universidades à Wissenschaft e às estruturas administrativas e estatais,
essa suspeita, de que há algo na racionalização e talvez mesmo na razão mesma que é  responsável pelo excesso de poder, pois bem, me parece que essa suspeita se desenvolveu sobretudo na Alemanha e, digamos para ser ainda mais breve, que ela se desenvolveu sobretudo no que se poderia chamar uma esquerda alemã. Em todo caso, da esquerda hegeliana à Escola de Frankfurt, houve toda uma crítica do positivismo, do objetivismo, da racionalização, da technè e da tecnicisação, toda uma crítica das relações entre o projeto fundamental da ciência e da técnica, que tem por objetivo fazer aparecer os elos entre uma
presunção ingênua da ciência de um lado, e as formas de dominação próprias à forma da sociedade contemporânea de outro. Para tomar como exemplo aquele que sem dúvida nenhuma que foi o mais longínquo do que se poderia chamar de uma crítica de esquerda, não se pode esquecer que Husserl em 1936 referia a crise contemporânea da humanidade européia a algo que abrigava a questão das relações do conhecimento à técnica, da épistèmè à technè. Na França, as condições para o exercício da filosofia e da reflexão política foram muito diferentes, e, por causa disso, a crítica da razão presunçosa e dos seus efeitos
específicos de poder não parece ter sido conduzida da mesma forma. E isso estaria, penso, do lado de um certo pensamento de direita, ao longo do século XIX e do século XX, que reencontrava essa mesma  acusação histórica da razão ou da racionalização sob o nome dos efeitos de poder que ele leva com ele. Em todo caso, o bloco constituído pelo Iluminismo e a Revolução impediu sem dúvida, de uma maneira geral, que se recoloque realmente e profundamente em questão essa relação da racionalização e do poder; talvez também o fato de que a Reforma, isto é, o que eu acredito ter sido, nas suas raízes mais profundas, o primeiro movimento crítico como arte de não ser governado, o fato de que a Reforma não havia tido na França a amplitude e a conquista que ela conheceu na Alemanha, fez, sem dúvida, que na França essa noção de Aufklärung com todos os problemas que ela colocava não teve uma significação tão ampla, e aliás ela nunca foi uma referência histórica tão longamente apresentada como na Alemanha. Digamos que na França, contenta-se com uma certa valorização política dos filósofos do século XVIII, ao mesmo tempo em que se desqualificava o pensamento do Iluminismo como um episódio menor na história da filosofia. Na Alemanha, ao contrário, o que era entendido por Aufklärung era considerado bem ou mal, pouco importa, mas certamente como um episódio importante, uma espécie de manifestação espetacular do destino profundo da razão ocidental. Acharia naAufklärung e em todo esse período, que em suma do século XVI ao XVIII serve de referência a esta noção de Aufklärung, tentava-se decifrar, reconhecer a linha de declive, a mais marcada da razão ocidental, enquanto era a política a qual ela estava ligada, que fazia o objeto de um exame suspeito. Tal é, se vocês querem, grosso modo, o quiasma que caracteriza a maneira que na França e na Alemanha o problema da Aufklärung foi posto no curso do século XIX e toda a primeira metade do século XX. Ora, creio que a situação na França mudou no curso desses últimos anos; e que de fato, esse problema da Aufklärung, (tal como tinha sido tão importante para o pensamento alemão desde Mendelssohn, Kant, passando por Hegel, Nietzsche, a Escola de Frankfurt etc...), me parece que na França chegou-se a uma época onde precisamente esse problema da Aufklärung pode ser retomado numa proximidade, suficientemente significativa, com os trabalhos da Escola de Frankfurt. Digamos, sempre para sermos breves, que - e isso não é espantoso - é da fenomenologia e dos problemas postos por ela que nós voltamos à questão do que é a Aufklärung. Ela nos fez voltar, com efeito, a partir da questão do sentido e do que pode constituir o sentido. Como fazer com que haja sentido a partir do não sentido? Como o sentido vem? Questão na qual se vê bem que é complementar a esta outra: como fez-se para que o grande movimento da racionalização nos tenha conduzido a tanto barulhos, a tanto furor, a tanto silêncio e mecanismo triste? Apesar de tudo, não se pode esquecer que A Náusea está há poucos meses da contemporânea Krisis. E é pela análise, pós-guerra, disso, a saber, que o sentido não se constitui senão por sistemas de constrangimentos característicos da maquinaria significante, é, me parece, pela análise desse fato que não há sentido senão pelos efeitos de coerção próprios às estruturas, que, por um estranho resumo, se reencontrou o problema entre ratio e poder. Penso igualmente (e aí seria um estudo a fazer, sem dúvida) que as análises da história das ciências, toda essa problematização da história das ciências (que, ela também, se enraíza sem dúvida na fenomenologia, que na França seguiu por Cavaillès, por Bachelard, por Georges Canguilhem, toda uma outra história), me parece que o problema histórico da historicidade das ciências não está sem ter algumas relações e analogias, sem fazer até um certo ponto eco, a esse problema da constituição do sentido: como nasce, como se forma essa racionalidade, a partir de que coisa que é absolutamente outro? Eis a recíproca e o inverso do problema da Aufklärung: o que faz com que a racionalização conduza ao furor do poder? Ora, parece que, sejam essas buscas sobre a constituição do sentido com a descoberta de que o sentido não se constitui senão pelas estruturas de coerção do significante, sejam as análises feitas sobre a história da racionalidade científica com os efeitos de constrangimento ligados a sua institucionalização e à constituição de modelos, tudo isso, todas essas pesquisas históricas não fizeram, me parece, senão confirmar como por um jogo rigoroso e como através de uma espécie de assassinato universitário o que foi, napesar de tudo, o movimento de fundo da nossa história desde um século. Pois, à força de celebrar que nossa organização social ou econômica carecia de racionalidade, nós nos encontramos frente eu não sei se demais ou insuficiente razão, em todo caso seguramente frente a poder demais; à força de ouvir cantar as promessas da revolução, eu não se aí onde ela se produziu ela é boa ou má, mas nós nos encontramos frente à inércia de um poder que indefinidamente se mantém; e à força de ouvir cantar a oposição entre as ideologias da violência e a verdadeira teoria científica da sociedade, do proletariado e da história, nós nos encontramos com duas formas de poder que se assemelhavam como dois irmãos: fascismo e stalinismo. Retorno por conseqüência da questão: o que é a Aufklärung? E se reativa assim os problemas que tinham marcado as análises de Max Weber: o que convém dessa racionalização que ela caracteriza não somente o pensamento e a ciência ocidentais desde o século XVI, mas também as relações sociais, as organizações estatais, as práticas econômicas e talvez até no comportamento dos indivíduos? O que fica dessa racionalização em seus efeitos de constrangimento e talvez de obnubilação, de implantação maciça e crescente e nunca radicalmente contestada de um vasto sistema científico e técnico? Esse problema, que nós somos obrigados na França de retomar sobre nossos ombros, esse problema do que é a Aufklärung? pode-se abordar por diferentes caminhos. E o caminho pelo qual eu gostaria de abordar, eu não o retomo absolutamente - e eu gostaria que vocês acreditassem em mim – em um espírito nem de polêmica nem de crítica. Duas razões conseqüentes fazem com que eu não busque outra coisa que não marcar as diferenças e de alguma forma ver até onde se pode multiplicar, dividir, remarcar uns em relação aos outros, deslocar, se vocês querem, as formas de análises desse problema da Aufklärung, que é talvez apesar de tudo o problema da filosofia moderna. Eu gostaria de, logo em seguida, abordando esse problema que nos torna fraternos em relação à Escola de Frankfurt, notar que de todas as maneiras, fazer da Aufklärung a questão central, isso quer dizer com toda a certeza, um certo número de coisas. Isso quer dizer de início que engaja-se numa certa prática que se chamaria histórico-filosófica, que não tem nada a ver com a filosofia da história e a história da filosofia, uma certa prática histórico-filosófica e por aí quero dizer que o domínio da experiência ao qual se refere esse trabalho filosófico não exclui dele nenhum outro absolutamente. Não é a experiência interior, não são as estruturas fundamentais do conhecimento científico, mas não é mais que um conjunto de conteúdos históricos elaborados por aí, preparados pelos historiadores e acolhidos todos fatos como fatos. Trata-se, de fato, dessa prática histórico-filosófica de fazer sua própria história, de fabricar como por ficção a história que seria atravessada pela questão das relações entre as estruturas de racionalidade que articulam o discurso verdadeiro e os mecanismos de assujeitamento que a eles são ligados, questão, vê-se bem, que desloca os objetos históricos habituais e familiares aos historiadores em direção ao problema do sujeito e da verdade que os historiadores não se ocupam. Vê-se igualmente que esta questão cerca o trabalho filosófico, o pensamento filosófico, a análise filosófica nos conteúdos empíricos traçados precisamente por ela. Daí, se vocês querem, os historiadores frente ao trabalho histórico ou filosófico vão dizer: "sim, claro, talvez", em
todo o caso não é nunca absolutamente aquilo, o que é o efeito de ruídodevido a esse deslocamento em direção ao sujeito e à verdade que eu falava. E que os filósofos, mesmo se eles não tomam todos os ares de galinhas d'angola ofendidas, pensam geralmente: " a filosofia, malgrado tudo, é bem outra coisa", isso sendo devido ao efeito de queda, devido a essa volta a uma empiricidade que não tem mesmo de ser para ela garantia de uma experiência interior. Concedemos a essas vozes do lado toda a importância que elas têm, e esta importância é grande. Elas indicam ao menos negativamente que se está no bom caminho, isto é, que através dos conteúdos históricos que se elabora e aos quais se está ligado já que são verdadeiros ou que valem como verdadeiros, coloca-se a questão: o que então eu sou, eu que pertenço a esta humanidade, talvez à margem, nesse momento, nesse instante de humanidade que está sujeitado ao poder da verdade em geral e das verdades em particular? Desubjetivar a questão filosófica pelo recurso ao conteúdo histórico, libertar os conteúdos históricos pela interrogação sobre os efeitos de poder cuja verdade - essa que eles pressupõem e marcam - os afeta, é, se vocês querem, a primeira característica dessa prática histórico-filosófica. De outra parte, essa prática histórico-filosófica se acha evidentemente numa relação privilegiada de uma certa época empiricamente determinável: mesmo se ela é relativamente e necessariamente fluida, essa época é, seguramente, designada como momento de formação da humanidade moderna, Aufklärung no sentido amplo do termo ao qual se referia Kant, Weber etc., período sem datação fixa, com múltiplas entradas já que se pode defini-la tanto quanto pela formação do capitalismo, a constituição do mundo burguês, a localização dos sistemas estatais, a fundação da ciência moderna com todos os seus correlativos técnicos, a organização de cara a cara entre a arte de ser governado e aquela de não ser governado de tal modo. Privilégio de fato, por conseqüência, para o trabalho histórico-filosófico que esse período, já que é aí que aparecem de alguma forma no âmago e na superfície das transformações visíveis, essas relações entre poder, verdade e sujeito que se trata de analisar. Mas, privilégio também no sentido de que trata-se de formar a partir daí uma matriz para o percurso de toda uma série de outros domínios possíveis. Digamos, se vocês querem, que não é porque se privilegia o século XVIII, porque interessa-se por ele, que se encontra o problema da Aufklärung; eu diria que é porque vê-se fundamentalmente colocar a questão o que é a Aufklärung? que se reencontra o esquema histórico da nossa modernidade. Não se tratará de dizer que os gregos do século V são um pouco como os filósofos do século XVIII ou embora o século XII já tivesse uma espécie de Renascença, mas sim de tentar ver sob quais condições, ao preço de quais modificações ou de quais generalizações pode-se aplicar a algum momento da história essa questão da Aufklärung, a saber as relações dos poderes, da verdade e do sujeito. Tal é o quadro geral dessa investigação que eu chamaria histórico-filosófica, eis como se pode agora a conduzir.